Os áudios que foram utilizados para a revisão criminal que, na prática, inocentou os condenados pela morte do menino Evandro Ramos Caetano, revelaram torturas e que os envolvidos foram coagidos a fazerem falsas confissões. Ouça acima.
O crime que ficou conhecido como O Caso Evandro aconteceu em Guaratuba, no litoral do Paraná, em 1992. O corpo dele foi encontrado em um matagal, com marcas de extrema violência, após o menino ficar desaparecido por dias.
Os áudios completos, que mostram os acusados recebendo instruções para confessar os crimes, se tornaram públicos em 2020, durante o podcast Projeto Humanos, do jornalista Ivan Mizanzuk, que contou a história do caso.
Posteriormente, a história virou série documental da Globoplay.
Foram os áudios obtidos pelo jornalista que embasaram o pedido de revisão criminal, protocolado pela defesa dos acusados em 2021. Na época, pareceres técnicos apontam que houve violência física durante os depoimentos.
Em agosto de 2023, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) aceitou o uso dos áudios completos como prova. As fitas estavam no processo desde o início, mas para o trâmite, foram usados trechos editados que mostravam apenas a confissão, suprimindo as torturas.
O julgamento ocorreu na quinta-feira (9), em Curitiba. Por três votos a dois, o TJ-PR anulou o processo que envolvia Beatriz Abagge, Davi dos Santos Soares, Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula Ferreira – falecido em 2011, no presídio.
No podcast e na série da Globoplay, Beatriz Abagge detalhou a violência que sofreu por policiais que a interrogaram. Em 2022, o Governo do Paraná fez uma carta com pedido de perdão pelas torturas cometidas contra ela.
“Eles me ditavam e quando eu errava, eles paravam essa fita e ditavam de novo. Se eu errasse, me davam choque de novo. Até sair o que eles queriam”, disse Beatriz na série documental.
“Eles me ditavam e quando eu errava, eles paravam essa fita e ditavam de novo. Se eu errasse, me davam choque de novo. Até sair o que eles queriam”, disse Beatriz na série documental.
Leia, abaixo, a transcrição de parte dos áudios que foram utilizados na revisão criminal:
Depoimento:
Osvaldo: "Foi, foi isso amigo, eu matei"
Interlocutor masculino: "Quem que tava junto com você?"
Osvaldo: [grita] "Aí, pera aí, amigo!"
Interlocutor masculino: "[...] choque."
Interlocutor masculino: "Quem que tava junto com você?"
Osvaldo: “Então, eu tava sozinho"
Interlocutor masculino: "Não"
Osvaldo: "Tava"
Interlocutor masculino: "Daí, você levou aonde?"
Osvaldo: "Levei no mato e matei"
Depoimento:
Beatriz: "Eu não olhei no relógio, e depois era noite"
Interlocutor masculino: "Olhe, menina, eu acho nós vamos ter que continuar na nossa sessão, você não tá querendo falar, né?
Beatriz: "Não! Eu to falando, to falando"
Interlocutor masculino: "Você não tá querendo cooperar"
Beatriz: "Era noite"
Depoimento:
Interlocutor masculino: "Tá, quem tava junto?"
Osvaldo: "Tava eu, o de Paula, ela e a mãe dela"
Interlocutor masculino: "E daí, o que vocês fizeram na fábrica?"
Osvaldo: "Levamos a criança pra lá, deixamo..." [fala interrompida por barulho caraterístico de tapa]
Interlocutor masculino: "Heim?"
Depoimento:
Interlocutor masculino: "Mas você sabe quanto que foi..."
Interlocutor masculino: "Foi sete"
Beatriz: "Sete milhões. Pronto."
Interlocutor masculino: "Confesse direitinho pra nós não botarmos a mão em você mais"
O que dizem os envolvidos
Por meio de nota, o advogado Antonio Figueiredo Basto, que defende os agora inocentados, afirmou que "hoje, a justiça foi feita". Além disso, destacou o trabalho do jornalista Ivan Mizanzuk, que identificou as fitas com indícios de tortura.
Afirmou, também, que os agora inocentes vão pedir indenização na Justiça.
Em nota, o Governo do Paraná afirmou que não faz parte do processo julgado, por isso, "neste momento, cabe ao Ministério Público decidir se irá recorrer da decisão nos tribunais superiores".
Até a publicação desta reportagem, o MP-PR não tinha informado que ações tomaria frente a decisão dos desembargadores pela anulação. Não cabe recurso da decisão.
No curso do Caso Evandro, o MP sustentou que não havia existido tortura nas investigações da polícia. Na sessão de quinta (9), entretanto, o órgão foi favorável à revisão criminal.
Quem eram os acusados
Sete pessoas foram acusadas de envolvimento no assassinato de Evandro:
Airton Bardelli dos Santos
Francisco Sérgio Cristofolini
Vicente de Paula
Osvaldo Marcineiro
Davi dos Santos Soares
Celina Abagge
Beatriz Abagge
O caso teve cinco julgamentos. No último, em 2011, Beatriz Abagge foi condenada a 21 anos de prisão. Celina, mãe dela, não foi julgada por tinha mais de 60 anos e o crime prescreveu.
As penas de Osvaldo Marcineiro e Davi dos Santos se extinguiram porque eles haviam permanecido presos por força de decisões anteriores. Vicente de Paula, outro réu, morreu de câncer no presídio.
Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli foram absolvidos em 2005.
Desaparecimento de Evandro
O menino Evandro desapareceu em 6 de abril de 1992. À época, o Paraná vivia o desaparecimento de diversas crianças na região.
Segundo a investigação, ele estava com a mãe, Maria Caetano, funcionária de uma escola municipal de Guaratuba, e disse a ela que iria voltar para casa após perceber que havia esquecido o mini-game. Depois disso ele nunca mais foi visto.
Após um corpo ser encontrado em um matagal, no dia 11 de abril de 1992, o pai de Evandro, Ademir Caetano, afirmou à época no Instituto Médico-Legal (IML) de Paranaguá ter reconhecido o filho, por meio de uma pequena marca de nascença nas costas.
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